Review | Metropolis (2001)
O filme alemão Metropolis de
1926, dirigido por Fritz Lang e escrito por Thea von Harbou, é para muitos o
melhor filme da história. Obviamente, não é uma unanimidade, mas sua
importância para a cultura é indiscutível.
Um dos primeiros filmes de ficção
científica e o primeiro que envolvia robôs e clonagem, Metropolis é um clássico
à frente do seu tempo com bastidores tão interessantes quando o filme em si.
Para começar, um filme expressionista alemão lançado em épocas de ascensão do
Partido Nazista, sendo um dos favoritos de Adolf Hitler. Anos depois, o
divórcio de Lang e Harbou, um que seguiu rumo aos EUA para fazer filmes
anti-nazismo e outra que se filiou ao partido fazendo propagandas pró-Hitler,
uma verdadeira história de cinema. Já não bastasse essa curiosa situação, o
filme, por fazer parte desse período conturbado da Alemanha, acabou quase sendo
esquecido eternamente, já que boa parte de suas cópias acabou destruída,
salvando-se poucas cenas de um filme de mais de duas horas.
Por sorte, ao passar dos anos
rolos de filme com trechos da obra acabaram sendo encontrados, sendo hoje
possível ter uma boa ideia do filme, apesar de ainda incompleto. A mais famosa
versão, com cerca de 80 minutos, dos anos 80, foi produzida pelo compositor
Giorgio Moroder e reapresentou essa fantástica obra ao público.
Num resumo básico, o filme lida com
uma sociedade futurista no ano de 2026 em uma cidade chamada Metropolis. Nessa
cidade, o proletariado em geral vive numa área baixa e térrea, enquanto os
ricos vivem em enormes arranha-céus num nível superior da cidade, com máquinas
voadoras e pontes entre torres. Um dia Freden, o filho do magnata e líder da
cidade Fredersen, acaba indo para a parte baixa da cidade disfarçado de
operário em busca de Maria, uma plebeia com quem encontrou na parte superior da
cidade. Após uma série de fatos, Maria, que era uma narradora de contos
bíblicos e seguida pelas crianças da parte baixa (o conto mais contado, Torre
de Babel, sendo uma clara analogia a grande torre de Fredersen em busca de
desafiar Deus), é raptada pelo cientista Rotwang, que a clona, passando sua
imagem para a robô Maschinenmensch,
a tornando a chamada “Fake Maria”. Após essa clonagem, surge todo um caos
envolvendo as duas partes da cidade, acarretando um caos entre classes. Essa
história, assim como o livro 1984, acabou se tornando a referência base para
qualquer ficção científica de distopia, sendo uma delas o mangá Metropolis, de
Osamu Tezuka que, ironicamente, nunca viu o filme, apenas se baseou num pôster do
filme para elaborar toda a ideia.
Capa original do mangá |
Considerando que Tezuka pouco sabia da obra alemã, é
bem fácil imaginar que é tudo diferente. Ambientado simplesmente no século XX,
o mangá de 1949 apresenta também uma realidade futurista, com foco principalmente
na evolução da raça humana. No mangá temos como grupo vilão o Partido Vermelho,
liderado pelo Red Duke, que busca a criação de um humano artificial com poderes
para ajuda-los em suas conquistas. Lawton, o cientista que é ordenado a criar o
ser, dá sua criação como morta, mas a esconde como seu filho, dando-lhe o nome
de Michi, com a trama depois se desenvolvendo após Michi descobrir ser um robô.
Num geral, o mangá soa muito mais como protótipo do clássico Astro Boy (maior
criação de Tezuka, lançado anos depois), do que algo relacionado ao clássico de
1926.
Mas eis que no ano de 2001 no Japão é lançado o filme
mais conhecido como Osamu Tezuka’s Metropolis, que é o que iremos realmente
tratar aqui (após esse prólogo de 5 parágrafos). Apesar desse nome, o filme
está longe de ser uma simples adaptação do mangá de Tezuka, mas sim uma nova
obra original, mas influenciada tanto pelo filme de Lang quanto o mangá de Osamu.
Dirigido por Rintaro (um dos principais diretores da Madhouse) e escrito por Katsuhiro
Otomo (simplesmente o criador de Akira), o filme mistura elementos de roteiro e
visual do filme com o mangá e adiciona uma atmosfera cyberpunk a tudo isso,
mesmo em um visual colorido e otimista.
Pra começar, o filme se aproveita da atmosfera do
filme, o mesmo estilo de arquitetura, com grandes torres e uma grande torre
central, mas com elementos mais cyberpunk, mais adequados a visão futurista
atual, o mesmo para a parte baixa da cidade, que ao invés de serem simples
casinhas teatrais, são grandes favelas coloridas, muito para reforçar o tom de
esperança, algo que será tratado aqui mais adiante.
Da parte do Tezuka, se aproveita alguns dos personagens,
principalmente o Red Duke que aqui assume um papel igual ao de Fredersen no
filme alemão. O Partido Vermelho aqui se torna os Marduks, um grupo de
vigilantes caçadores de robôs defeituosos liderados pelo filho adotivo de Duke,
Rock. Red Duke é o grande mandante de Metropolis apesar de haver um prefeito
por lá, e atualmente tem como grande projeto o Ziggurat, um misterioso
arranha-céu que para Red Duke funciona com o mesmo ideal da Torre de Babel.
Enquanto isso, vem do Japão o detetive Shunsaku Ban e seu sobrinho Kenichi
(também presente no mangá) com a intenção de prender o cientista Laughton,
acusado de estar envolvido de tráfico de órgãos e partes humanas.
Logo vemos que Laughton está trabalhando para Red Duke
em um projeto secreto, no caso a criação da androide Tima, que seria uma cópia
perfeita da filha morta de Duke e que teria papel essencial para os planos do
Ziggurat envolvendo o domínio da energia do sol (ideia também apresentada no
mangá). Após uma série de problemas envolvendo ciúmes de Rock, o laboratório de
Laughton acaba destruído e Tima acaba desaparecida pelas favelas de Metropolis
ao lado de Kenichi.
A ideia de misturar Maria e Michi para a criação de
Tima é excelente, criando uma personagem totalmente nova mas com elementos dos
outros dois personagens, sem falar em todo o respeito geral do filme pelas duas
obras. Obviamente, a narrativa aqui é muito melhor trabalhada que nas outras
duas versões, até pelas mesmas terem sido lançadas ainda na primeira metade do
século XX, sem falar em toda a evolução tecnológica no mundo todo nos 50 anos
seguintes e principalmente às inúmeras obras de sci-fi lançadas e que servem
também como base para esse filme. Não é difícil em alguma cena se lembrar de
algum momento de Akira ou até mesmo do subestimado Brazil, indo muito mais além
do que ser um simples remake.
O visual do filme é espetacular. A mistura e o
contraste de cores consegue deixar tudo mais alegre, apesar da cidade as vezes
reforçar mais o cinza ou o dourado (a noite) por causa das grandes torres. Toda
a parte do mapeamento da parte superior da cidade é feita em computação gráfica
que, apesar de limitada pela época, não chega a incomodar em nenhum momento
justamente pela beleza artística. Como já dito, as favelas remetem muito ao
cyberpunk clássico, com vários toques futuristas ao mesmo tempo que tudo se assemelha
a situações de vida de pessoas de classe baixa e miserável da nossa realidade.
Apesar de tudo, ainda mantem o visual colorido do filme todo, com destaque aos
feixes de luz que passam através dos telhados das casas, simbolizando a
esperança daquele povo de algum dia conseguir alcançar os mesmos benefícios das
classes superiores, aonde magistralmente reforçado em cenas silenciosas com
Tima abaixo dessa luz.
Vale o destaque que aqui robótica não é nenhum
mistério, então Tima está longe de ser um diferencial como é Maschinenmensch
apenas por ser artificial. A grande diferença está mais no fato da semelhança
quase perfeita à um humano, com todos os órgãos feitos artificialmente,
diferente dos outros robôs que possuem uma aparência clássica de máquinas. É
por essa incrível semelhança que em vários momentos é debatido sobre até onde
Tima não é uma pessoa, já que ela se parece e tem os mesmos sentimentos de uma
garota normal, algo que sempre foi debatido na literatura sci-fi (principalmente
com Asimov) e mais especificamente no cinema com Blade Runner.
Ainda lidando com o visual, muito da valorização do
nome de Tezuka no filme se deve ao design dos personagens. Todos são feitos com
o traço característico do mangaká (obviamente apenas o traço, já que o mesmo
faleceu em 1989). Ou seja, é tudo com um traço bem infantil, com tudo meio
exagerado, como pernas e braços largos e narizes enormes, isso no meio de um
roteiro que lida com assuntos mais pesados e até mesmo com violência, o que
causa um enorme contraste.
A trilha sonora original é composta por Toshiyuki Honda,
totalmente voltada ao jazz (o que entra na parte das semelhanças com Brazil). A
trilha casa muito bem com o estilo alegre do filme e serve para dar contraste
com as partes mais fortes. Além da trilha original, o filme possui a clássica I
Can’t Stop Loving You de Ray Charles, musica presente durante alguns momentos
do filme e que acaba sendo tocada na integra durante toda uma cena, dando uma
carga muito mais dramática à cena.
Lançado no mesmo ano de A Viagem de Chihiro, Metropolis
é uma obra que acabou passando despercebida na época que foi lançada (já não
bastasse o menor foco do mercado a filmes de língua não americana), acabando
muitas vezes passando em branco em listas de grandes clássicos da animação
japonesa, até por um certo preconceito de ser um remake. De qualquer modo, Metropolis
de 2001 é uma verdadeira obra prima, um show de enquadramentos perfeitos e de
direção de arte, com um uso magnífico da computação gráfica apesar das
limitações, um roteiro excelente e uma trilha sonora magistral.